pitomba verde
domingo, outubro 10, 2004
sobre a ascensão de arcelino

arcelino lia tranquilamente seu jornal enquanto petiscava aqui e ali um estrogonofe de frango, tendo seu almoço solitário de domingo num bom restaurante ao lado do parque principal. as mesas e cadeiras de madeira, bastante requintadas, eram colocadas na calçada, aos domingos, sob as sombras das grandes árvores e com vista para o parque, e isso atraía famílias inteiras que vinham provar a especialidade do restaurante, o estrogonofe de carne acebolada, com creme de banana e pimenta, uma mistura exótica, mas que fazia sucesso na cidade. arcelino, no entanto, estava proibido por seu médico de comer seu prato preferido, e por isso ele, um senhor de idade de saúde frágil, limitava-se a pedir um simples estrogonofe de frango com suco de mangaba ao mesmo tempo em que se punha a ler jornal. neste domingo, em especial, a leitura do jornal estava ficando um pouco complicada, pois ao seu lado, numa mesa, uma barulhenta família não parava de tagarelar, e havia uma mulher com uma voz extremamente gasguita e um homem que ria como uma metralhadora por qualquer coisa, e arcelino quase estava para se levantar quando foi surpreendido por um pobre mendigo, um homem que, embora tivesse lá seus 40 anos, os difíceis anos de solidão e miséria tinham-no deixado com um aspecto repugnante, de barbas imundas e pele que parecia casca cobrindo todo seu rosto, e um cheiro horroroso, como um incenso pútrido que o acompanhava por onde quer que fosse. por um instante arcelino não entedeu o que o sujeito tentava lhe falar, mas então percebeu que se tratava do de sempre, o que mais poderia ser que aquela gente queria, senão esmola? o mendigo estava faminto. ainda que estivesse num estado de inquietação incomum (lembremos da algazarra familiar ao seu lado), arcelino, naquele dia, tomou uma atitude inesperada, pois se sua mulher ainda estivesse viva teria ficado pasma ao ver seu marido convidar "aquela imundície ambulante" a sentar com ele, sendo que foi realmente o que aconteceu, imediatamente chamando um garçom para que trouxesse "um enorme prato de estrogonofe acebolado" para o indigente. não demorou muito para que o prato viesse, e arcelino notou que o garçom, outrora bastante solícito e sorridente, desta vez parecia um tanto quanto tenso, colocando o prato no meio da mesa, e não à frente do sujeito, como deveria fazer, e assim também os talheres foram postos todos juntos, quase jogados, e não dispostos cuidadosamente na vertical, como obedecesse a um rito. para o mendigo, porém, nada disso era importante, logo estava comendo, frenetica e alegremente. arcelino ficou a observá-lo durante um tempo, e não demorou sentiu um súbito alívio no coração (muito estranho), que foi seguido por uma ou outra reflexão cristã, e sua mente teria se enredado muito mais em teias morais e filosóficas se não fosse por uma repentina percepção de que a família ao seu lado, aqueles alienígenas barulhentos de minutos atrás, agora falava baixo, por vezes sussurrando, e disfarçava olhares tortos em sua direção. as crianças, elas, como sempre, às vezes faziam em alto e bom som perguntas que revelavam o teor das conversas dos adultos, ao que eram rapidamente censuradas com chiados e tapinhas. arcelino percebeu então que não apenas seus "vizinhos", mas outras mesas também passaram a olhá-lo de maneira estranha, alguns nem disfarçavam sua reprovação, e isso o deixou um pouco perturbado, como se podia notar, mas resolveu ignorar todo o resto e continuou, fascinado, a observar seu convidado enquanto este saboreava, pela primeira vez na vida, o creme de banana apimentado que era especialidade da casa. foi interrompido pelo garçom, que pediu educadamente que o acompanhasse. arcelino deixou o mendigo comendo e seguiu o garçom estabelecimento adentro. em sua cabeça perguntava a si mesmo o que poderia ser, e, pior ainda, por que estava a seguir aquele idiota sem ao menos indagar o motivo, mas, então, antes que pudesse dizer algo, o garçom parou próximo ao balcão e o apresentou ao dono do restaurante, que por sua vez foi direto ao ponto dizendo a arcelino que ele não deveria ter convidado o indigente para comer e, muito pior, sentar com ele, que já havia reclamações dos outros clientes, que aquilo deveria ser resolvido imediatamente. o cozinheiro apareceu como que por encanto e acrescentou que seu prato preparado com tanto carinho e entusiasmo não poderia ser desperdiçado em paladares tão abjetos quanto aquele, e diante daquilo tudo o velho arcelino ficou chocado. demorou alguns minutos para entender o que aqueles homens queriam. chegou a ouvir a voz de sua mulher o reprovando, enquanto o dono do restaurante olhava para ele firmemente, esperando a única atitude que lhe era cabível. o que aconteceu foi que arcelino não sabia o que fazer, como poderia chegar lá e pedir ao homem que se retirasse depois de ter feito o que fez? "não sei o que fazer", ele disse, ao que prontamente o dono lhe sorriu e, pondo em suas mãos um revólver, falou-lhe delicadamente ao ouvido para que matasse aquele vagabundo. então arcelino finalmente entendeu tudo, entedeu que havia agido mal ao convidar o maltrapilho para sentar, que tudo não passara de um grande erro, e pediu desculpas ao dono do restaurante, dizendo-lhe que aquilo não iria se repetir, e ao chef falou-lhe que era o maior apreciador de seu prato, que realmente tal iguaria não deveria ser desperdiçada na boca de selvagens, e nesse momento saiu do restaurante a passos firmes para despejar três tiros no mendigo, o segundo e o terceiro disparados quando o animal agonizava no chão, ao lado da família-algazarra, o primeiro nas costas, enquanto o homem comia. houve um breve silêncio, seguido por aplausos de todos os presentes, exceto do homem forte com gargalhada-metralha, pois esse, ao ver o acontecido, havia mergulhado numa crise de riso. o garçom, só sorrisos, veio e limpou a mesa, o dono do bar deu parabéns a arcelino, que lhe devolveu a arma, e todos voltaram a comer (o homem ainda continuava a rir). arcelino sentou-se, acabou seu suco de mangaba e pediu a conta ao garçom, mas este lhe disse que, devido ao acontecido, ao dono bastava que pagasse o que o defunto havia consumido, pois o seu era cortesia, assim como o seria por domingos seguidos, embora arcelino ainda não soubesse. o velho então pagou o que devia e, com o coração aliviado, limpou sua calça e foi para casa. próxima vez, pensou, iria quebrar um pouco a dieta e pedir a carne acebolada.

ps.: revisado/editado em 11/01/2005. quando arcelino se dá conta de que "foi um erro" chamar o mendigo pra almoçar, uma frase no texto sugeria que sua irritação (causada pela algazarra da família) era a causa principal pra ele ter chamado o mendigo pra sentar. essa idéia é errada e a frase foi removida.
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